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quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

O fio da vida

Este texto faz parte da série 'O que me contaram sobre a vida', onde escrevo sobre experiências e lembranças que muitas pessoas me confiaram. Claro, não cito nomes, mas todos os textos desta série são baseados em pessoas reais

Eu me considero uma pessoa forte, capaz de encarar bem os fatos conturbados na louca vida breve. Sempre passei por cima das pedrinhas que insistiam em atrapalhar meu caminho! De repente, uma pedra enorme e bem pontuda entrou no meu sapato, e desta vez, eu não tenho como me livrar dela.
Nós todos crescemos conhecedores do ciclo da vida. Nascer, crescer, envelhecer e morrer! A tal ordem natural deveria ser essa; não deveria ser comum filhos partirem antes dos pais. Após uma certa idade, nossos pais envelhecem e, sem que se possa evitar, a certeza da morte assombra nossos pensamentos.Mas essa, sem dúvida, apesar da consciência da fragilidade e validade da vida, é uma certeza difícil de encarar.
Soube hoje que minha mãe está doente e não é uma doença qualquer! Não é algo que eu possa controlar, parar ou, definitivamente, curar. Ela realmente está doente e eu preciso aceitar isso!
O que fazer de agora em diante? Tratá-la da melhor maneira que puder, paparicando-a e aproveitando cada minuto ao seu lado? Agir como sempre agi, sendo a filha que sempre fui? E como ser a mesma pessoa depois de uma revelação desta profundidade?
Pois é, são muitas as perguntas que me faço neste momento!
Sabe, tenho pensado no que fomos uma pra outra até agora! Será que se nos separássemos hoje,  estaríamos felizes com o que fomos, fizemos e dissemos uma pra outra durante todos esses anos de companhia e presença?
Na verdade, eu só desejo que ela tenha sido feliz.
Hoje, não importa o que seja feito, ela está cheia de lembranças de todos os seus anos. A saída é continuar enchendo-a de boas lembranças. 
Através da ciência, da medicina, do homem, pode-se afirmar muitas coisas, mas há uma que vai além de qualquer estudo: o tempo da vida! A vida é incalculável, mesmo quando todos os cálculos possíveis sejam feitos, nunca se chegará ao verdadeiro resultado, nunca!
Agora, o que quero são abraços intermináveis, abraços que durem o tempo equivalente ao tempo da minha infância, ao tempo incerto e frágil da vida, um tempo grande e caloroso.
Existe um texto, do Carpinejar que se chama "Pai de meu pai" que fala sobre como os filhos se transformam em pais dos seus próprios pais quando eles já não podem mais "caminhar" sozinhos, mesmo que eles não se deem conta disso. E quero terminar este relato com a frase final deste texto.
"O que um pai quer apenas ouvir no fim de sua vida é que seu filho está ali."


quarta-feira, 2 de julho de 2014

A arte dos encontros e das despedidas

Desta vez, eu que já escrevi sobre tantas pessoas, vou escrever sobre mim.
Me pego pensando agora em como o homem pode ser tão indiferente. Não posso entender o que acontece que torna as pessoas estranhas umas para as outras da noite pro dia. A vida é a arte dos encontros, e essa é a grande maravilha de viver. Por vezes é preciso mudar as pessoas de lugar, elas tomam outras formas e se encaixam em outro pedaço de nós, e isso é natural. Tudo muda o tempo todo!
A vida também é a arte das despedidas, pois é necessário deixar alguém ir se for preciso. Mas o "deixar ir" é algo tão complexo. Deixa-se ir a matéria, o corpo, mas não o que está em energia, em lembrança. 
Na minha opinião é impossível um dia ser tudo e no outro ser nada. Ninguém é sincero se defende essa causa. Quem foi algo um dia será pra sempre, mesmo se deixamos essa pessoa ir.
Hoje estou atormentada com isso, pois me encontrei com alguém muito importante em minha história. Uma pessoa que - entre trancos e barrancos- me ajudou a ser quem sou hoje e não foi nada legal.
Não queria encontrá-lo, não estava preparada e não planejei, mas aconteceu e me derrubou. Me colocou no chão com aqueles olhos indiferentes como se eu nunca tivesse existido. Me magoou em não falar comigo, exceto o que era necessário naquele momento. Me entristeceu quando eu percebi que ali não havia nada do que eu conhecia, e não reconhecer alguém que já foi descodificado é algo bastante doloroso.
Eu, definitivamente, não consigo acreditar que as relações,  sejam elas quais forem, podem se tornar um dia pó, pois todos aqueles que passaram por mim deixaram muita coisa que trago comigo até hoje. 
Aqueles que deixei ir continuam comigo de alguma forma e sempre será assim, e sinceramente, encontrar com alguma dessas pessoas e achar que posso tratá-las como alguém que nunca foi nada é a mais pura mentira.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

O DIVÓRCIO

Este texto faz parte da série 'O que me contaram sobre a vida', onde escrevo sobre experiências e lembranças que muitas pessoas me confiaram. Claro, não cito nomes, mas todos os textos desta série são baseados em pessoas reais

Eu tinha 13 anos.
Há algum tempo meus pais estavam discutindo, e já era de se esperar que eles se separassem.
Minha mãe pediu pra que ele fosse embora de casa, ele foi, mas não sossegou e continuou aterrorizando, - isso era o que ele fazia melhor -.
Meus irmãos caçulas estavam muito abalados, mas não choravam, e eu achava estranho eles reagirem com aquele silêncio todo.
Minha mãe me parecia bem, apesar de enfrentar um divórcio ser algo um tanto quanto desgastante, ela estava firme, queria isso há muito tempo.
Tenho a lembrança de quando ela nos chamou pra conversar, ela nos perguntou muitas vezes se tudo bem se nosso pai fosse embora de casa e nos mostrou o quanto estava infeliz casada.
Depois de toda a turbulência - por covardia e medo-ela voltou com ele. O colocou dentro de casa de novo e como se estivesse tudo bem, usando a máscara de uma família feliz nós encaramos o almoço de domingo da casa da vovó.
Naquela época eu tinha muito medo de falar. Quase não falava sobre o que sentia, eu guardava tudo dentro de mim.
Na nossa casa, uma casa grande e bonita, tinha um corredor enorme que ligava todos os quartos e um banheiro.  O meu quarto era o último e tinha uma janela grande que dava para um corredor no quintal. A última cena que me vem à mente sobre a volta dos meus pais é a de um abraço no meio deste corredor, quase em frente ao meu quarto. Por algum motivo estranho, eu abracei meus pais, chorando muito, em seguida fui tomar banho.
Eu morria de medo do meu pai. Ele nos batia, batia também na minha mãe.
De repente nesta etapa da minha vida fui me lembrando de muita coisa. Acho que isso é normal quando se está passando por um momento ruim. A vida vai mesmo passando feito um filme de forma acelerada que quase nos perdemos no tempo.  E no meu filme tinha muito terror.
Eu, sentada no quintal de casa, e meu pai me acertou em cheio o rosto. Minha boca sangrou. Eu tinha medo até de chorar, pois às vezes quando eu chorava muito ele me batia mais pelo choro. Então, eu tinha um choro sentido, quieto, quase apenas interno.
Eu, sentada no chão do meu quarto, brincando de Barbie e agora não lembro o motivo, mas quando percebi que meu pai estava chegando perto de mim, eu fiz xixi nas calças. Tinha tanto medo dele que fiz xix nas calças antes mesmo que ele entrasse no quarto.
Me lembro de estar dormindo no chão do quarto da minha mãe. Eu e meus irmãos costumávamos deitar sobre o edredom no chão do quarto para assistir a um filme. Deitávamos os três, lado a lado. Nesta noite, nós todos dormimos, inclusive meu pai e minha mãe. Durante a noite acordei com meu pai com a mão em mim. Eu era uma criança, estava assustada. Me lembro de ter continuado em silêncio – por algum motivo eu não fazia barulho,não chamava ninguém - , olhei pra ele, bem nos olhos. Seus olhos de monstro no escuro, ele estava com uma das mãos atrás da cabeça, segurando-a levantada, eu me virei de costas, ele tirou a mão de mim. Custei a dormir naquela noite, minha respiração estava acelerada, estava com medo de fechar os olhos. Nunca me esqueci disso, dos olhos dele. Até hoje não sei decifrar o que seus olhos diziam. Talvez ele não quisesse estar fazendo aquilo.

No final, ela se separou mesmo dele.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

O CASAMENTO

Este texto faz parte da série 'O que me contaram sobre a vida', onde escrevo sobre experiências e lembranças que muitas pessoas me confiaram. Claro, não cito nomes, mas todos os textos desta série são baseados em pessoas reais.  * Este texto em especial é baseado em uma declaração que li na revista francesa ELLE.
Eu vou me casar em poucos meses. O vestido já foi escolhido, a decoração, a música, o buffet e tudo o que é necessário e obrigatório em um casamento de princesa.
Quando conto aos outros que estou à beira do altar é uma alegria só, não minha, mas dos outros. É incrível como os outros se alegram tanto com casamentos alheios!
Sim, eu estou prestes a me casar, mas não estou feliz e muito menos apaixonada.
Decidi me casar. Uma decisão friamente calculada. 
Tenho 33 anos e sinto a sociedade me cobrando filhos, casamento e família feliz. Decidi me casar para não ficar pra titia, pra ter um filho e eternizar um pedaço meu e pra não ser uma velha sozinha quando os anos correrem.
Posso ser egoísta, eu sei, mas quem não é um pouco as vezes? 
Eu escolhi meu marido. Como? Ele tem um bom emprego, trata sua mãe muito bem, é inteligente e é louco para ter uma família linda como as de revista. É tudo o que qualquer mulher gostaria de encontrar. 
Dizem que os homens tratam suas mulheres da mesma forma que trataram suas mães durante a vida, não sei se é verdade, mas se for, eu serei tratada como rainha. 
É claro que meu noivo não sabe o que penso sobre o casamento. Não sabe e nem poderia saber, ou então eu perderia tudo.
O fato é que vou mesmo me casar sem amor e isso vai contra tudo aquilo que aprendemos quando crianças. Isso vai contra toda a ideia da magia do casamento e de lindas histórias de amor, mas a vida é mesmo assim.
Me caso dentro de alguns meses, e estou prestes a viver uma mentira pro resto da minha vida só para continuar dentro dos padrões.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

A ÍNDIA

Este texto faz parte da série 'O que me contaram sobre a vida', onde escrevo sobre experiências e lembranças que muitas pessoas me confiaram. Claro, não cito nomes, mas todos os textos desta série são baseados em pessoas reais
Sou adotada e minha mãe nunca me escondeu isso. Ela me contava histórias sobre ser mãe do coração, que não podia ter filhos e que outra mãe me gerou apenas para que ela pudesse realizar o desejo de criar uma menininha.
O fato de ela nunca ter tentado me esconder a verdade não a torna uma pessoa mais digna de elogios. Ela não teria como me esconder nada pois tenho traços indígenas  muito fortes e minha mãe e meu pai de criação são brancos feito leite.
Papai e mamãe se casaram muito novos, naquela época os pais dos noivos tinham que aprovar os casamentos e eles gostavam do meu pai. Minha mãe queria se casar com um tal apelidado Russo que era jogador de futebol, mas as más línguas diziam que jogadores eram mulherengos e que ela nunca seria feliz com ele. Dito e feito! Tempos depois soubemos que Russo nunca fez sucesso e teve três casamentos. Pra finalizar a tragédia, ele terminou a vida preso por tráfico de drogas, ou seja, mamãe fez a melhor escolha.
Meus pais tentaram ter filhos logo no começo do casamento, mas todas as tentativas foram afogadas num mar de lágrimas. Eles até conseguiram por duas vezes, mas a primeira gravidez terminou do segundo na oitava semana e na segunda o bebê nasceu morto porque passou do tempo. As duas situações destruíram minha mãe e ela teve uma depressão terrível: emagreceu muito, ficou fraca e doente e decidiu nunca mais tentar engravidar.
Algum tempo depois o casamento já não ia bem. Parece que chega um momento da relação onde o casal parece não mais se bastar e o peso dos filhos aparece de novo.  Era exatamente nesse momento da relação que eles estavam. O peso e assombração da prole caiam sobre os ombros, mas mamãe tinha medo de abortar ou de perder o bebê mais uma vez. Ela me conta que foi o pior momento do casamento porque ela se sentia inútil, incapaz de arcar com a obrigação feminina imposta pela sociedade de dar herdeiros ao marido. Ser boa esposa e boa mãe sempre foi o papel de todas as mulheres daquela geração e era um desgosto uma mulher não dar filhos ao marido!
Meses e meses em crise matrimonial e papai decide dar o braço a torcer e tentar melhorar a situação dos dois. Imagine: apenas os dois naquele casarão enorme vivendo em clima ruim!
Mamãe me contava muito sobre esse dia; o dia em que papai decidiu salvar o casamento! Ela dizia que quando ele chegou em casa ela estava regando as flores e que ele foi direto ao quarto; quando ele saiu estava vestido de palhaço e fazendo gracinhas. Ele sabia que mamãe adorava circo, e foi assim, vestido de palhaço que ele a convidou para ir ao circo naquela noite.
Quando o circo chegava toda a cidade virava uma bagunça só! Era uma das maiores atrações da época. E lá foram os dois, ao circo, animados, com brilho nos olhos e cheios de esperança!
Mamãe me contou que foi nesse dia que conheceu minha mãe biológica: uma trapezista adolescente, linda, pele cor de jambo, índia, cabelos bem lisos e negros. Ela se apresentava todas as quintas no circo e estava grávida de poucas semanas. Mamãe começou a frequentar o circo todas as semanas para ver a trapezista, sem saber quem era, sem nem trocar uma palavra; apenas por admirar a arte e a maneira delicada como fazia piruetas no ar.
Em uma apresentação a índia trapezista não conseguiu subir ao trapézio, parecia se sentir mal e mamãe mais que depressa correu à coxia para saber o que estava acontecendo. Foi quando descobriu que a índia, Axanti, estava grávida.
Mamãe estava surpresa e decepcionada. Como uma menina poderia estar grávida e ela não? Chorou a noite toda pedindo desculpas a meu pai por não conseguir ampliar a família deles.
Na manhã seguinte foi procurar Axanti sem saber bem o que esperar do encontro. Já no circo, perguntou a idade da menina. 14 anos! Durante a conversa a índia contou que não queria a criança e que só tinha transado uma vez, foi aí que minha mãe teve a mirabolante ideia de convidar Axanti para morar com eles, dessa forma, ela cuidaria da menina, participaria da gravidez e depois que o bebê nascesse Axanti poderia ir embora e ela então seria a mãe do pequeno bebê indígena.
E assim, passaram-se meses. Mamãe cuidou de Axanti até o momento do parto. Tudo previamente combinado e esclarecido.
No hospital, parto normal, recuperação rápida. Como haviam combinado, Axanti se vestiu e mamãe deitou-se na maca colocando a pulseira com o nome da mãe e do bebê no pulso durante a troca de turno das enfermeiras. Esse pequenos crimes eram comuns naquela época.
Mamãe saiu do hospital comigo nos braços como se fosse minha mãe biológica e me registrou, como filha legítima. Meu nome é Potira, que significa ‘flor’, nome de índia em homenagem a minha história.
Nós nunca mais soubemos nada sobre minha mãe biológica, apenas que levava a vida nos circos, viajando o Brasil.


quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

A MORTE

Este texto faz parte da série 'O que me contaram sobre a vida', onde escrevo sobre experiências e lembranças que muitas pessoas me confiaram. Claro, não cito nomes, mas todos os textos desta série são baseados em pessoas reais
Hoje descobri que vou morrer. Ainda não contei a ninguém.
Na verdade eu parei aqui pra sentar um pouco e digerir a notícia que a Dr.X acabou de me dar. Eu vou morrer! Não sei se vai demorar alguns meses. Pode levar alguns dias. Pode levar pouco.
Engraçado, no momento em que sai do hospital aquela música me veio à cabeça: “sei que vou morrer, não sei o dia. Levarei saudades da Maria! Sei que vou morrer, não sei a hora. Levarei saudades da Aurora. Quero morrer numa batucada de bamba, na cadência bonita do samba”.
Eu tenho 38 anos, sou casada e não tenho filhos. Neste exato momento eu penso que não deveria ter esperado para engravidar somente este ano – eu não vou engravidar e ainda vou morrer – não vou deixar nenhuma parte minha viva. Nem sei como dizer isso a meu marido, nem sei como dizer isso a alguém. “Gente, eu vou morrer, mas está tudo bem”!
Aquela coisa de escrever um livro, plantar uma árvore e ter um filho faz bastante sentido. Não só isso. A religião também faz um sentido maior, assim como o amor e minha vontade de ficar viva.
Eu nunca pensei morrer cedo. Queria viver 100 anos. Adiei meu casamento, adiei meus planos, o momento de ser mãe; tudo isso porque tinha certeza que viveria muito e agora essa bomba. A morte é mesmo bem silenciosa. Ela vem andando devagar como se pisasse em ovos. Uma pilantra, canalha...
Eu pensava que morreria em silêncio, dormindo, na mais pura tranquilidade. Saber que vamos morrer tem o lado positivo: eu posso dizer a algumas pessoas o quanto elas são especiais, fazer coisas com meu marido que ainda não fizemos, escrever memórias, olhar fotografia e lembrar dos momentos com mais frequência, andar na chuva e pensar no quanto é gostoso sentir os pingos, abraçar mais, beijar mais, valorizar... Confesso que deixei de olhar coisinhas pequenas durante a vida.
Pelo que notei até agora, o lado negativo é a angústia que acompanha a notícia da morte. O coração parece que começa a bater mais devagar e eu pareço ter mais cuidado, como se fosse quebrar a qualquer momento. Todo o cuidado que nunca tive. Sempre fumei, bebi, dormi pouco e baguncei demais. Comecei a malhar e melhorar a alimentação há uns 6 anos, mas o cigarro... nunca deixei o cigarro, e olha que meu marido me enchia o saco todos os dias pra parar de fumar!
Estou podre por dentro. O câncer me tomou toda e eu nem sabia que estava doente.  Dr.X disse que nem adianta me operar, não há nada a ser feito. O que me preocupava mais era ter que passar o resto dos meus dias no hospital, mas ela me tranquilizou e me orientou a procurar os médicos apenas quando eu já estiver bem ruim e fraca. Melhor assim. Quero ficar livre no fim da vida.
Estou começando a ter dúvidas se vou contar a alguém sobre isso. Eu tenho medo de as pessoas criarem uma imagem diferente a meu respeito ou de me tratarem com dó, olhos piedosos. Deus que me livre! Não quero ser a coitadinha!
E tem mais: não quero ver meu marido chorando! Ele vai sofrer e isso vai me matar antes da hora. Ele é um homem muito bom e sensível além da conta. Se eu te contar onde nos conhecemos... Eu estava em um cinema ao ar livre, sozinha e ao meu lado um homem se acabando de chorar. Ele estava me irritando. Primeiro porque eu não estava gostando do filme e segundo porque o barulho do seu choro era um saco, queria fazê-lo engolir as lágrimas. Ele chorou o filme inteiro e no final ele se desculpou pelo incômodo.  Eu respondi brincando: “nada que um café não pague” e assim foi. Estamos juntos desde então.
Nunca imaginei que fosse morrer antes dele. Deus, eu não pensava em morrer, nem antes, nem depois! Simplesmente não pensava na morte e quando pensava ela era feia e vestia uma capa preta de bruxa. Não era assim, calada e sem forma.
Não consigo parar de pensar em como contar pra minha família, se é que vou mesmo contar! Não posso escrever um bilhete e colar no espelho do banheiro como aquele “Eu te amo” de surpresa, muito menos escrever como num cartão de aniversário e nem por email com cópia pra todo mundo interessado em mim. Não se conta a morte como se conta a vida.
É no mínimo enlouquecedor pensar que posso não estar viva na semana que vem!
Me desculpe, eu não tenho mais o que dizer.

O RECOMEÇO

Este texto faz parte da série 'O que me contaram sobre a vida', onde escrevo sobre experiências e lembranças que muitas pessoas me confiaram. Claro, não cito nomes, mas todos os textos desta série são baseados em pessoas reais.
Fomos à Ilhabela passar alguns dias, eu, meus pais e meus irmãos. Era uma viagem de família, como fazíamos todos os anos. Seriam quatro dias para descansar, ficarmos juntos e nos divertir. E foi incrível!
Ficamos em um apartamento bem perto da praia, em um hotel – do qual não me lembro o nome-, mas que era bonito e aconchegante. Me lembro que havia um parquinho, e eu e minha irmã não saíamos de lá. Meu pai gostava muito de jogar bilhar, jogava todas as noites quando chegávamos da praia e mamãe só ficava nos observando. Aliás, observar é bem coisa de mãe, não é?
O meu pai era piloto de corrida. Eu achava isso um máximo e vivia falando aos amigos da escola sobre sua profissão, eu tinha um grande orgulho! Dizia que ele era amigo de gente famosa, mas isso era mentira, eu gostava de inventar sobre seu trabalho.
Mamãe era artista plástica, das melhores de São Paulo! Era tão legal o trabalho da minha mãe que eu ficava olhando-a pintar, mas eu fazia isso escondido, pois o cheiro da tinta era forte demais pra eu ficar sentindo, então eu era proibida de ficar no atelier.
Uma das coisas mais legais lá na nossa casa era uma parede da sala: a mais colorida entre todas paredes de todas as casas de minhas amigas! Minha mãe nos deixava - eu e minha irmã- pintar e rabiscar as paredes com tudo o que gente quisesse. Tinta, giz de cera, cola, brilho... era linda, e principalmente hoje, é uma lembrança maravilhosa do que nossa família já foi.
Sabe a nossa viagem à Ilhabela? Então, foi tudo demais até o momento de voltarmos.
Meu pai dirigia muito bem, sempre estávamos tranquilos com ele. Nossa trilha sonora de quase todas as viagens era Renato Russo- o cantor preferido do meu pai-, eu não gostava muito, mas já sabia até cantar de tanto que ele ouvia. Como todas as vezes, entramos no carro e começamos a nos organizar pra pegar a estrada rumo à São Paulo. Mamãe nos ajeitou nos bancos. Colocou os cintos. Papai ligou o rádio ao som de uma música que não lembro o nome.
Meu irmão encostou a cabeça no vidro e agarrou um travesseiro que ele nunca largava. Minha irmã estava sentada no meio e eu na outra janela.  Tudo pronto, seguimos em frente.
Já era fim de tarde quando saímos da cidade, e foi anoitecendo bem depressa. Não me lembro de mais nada depois disso, a minha última lembrança são as luzes da estrada brilhando forte, e eu peguei no sono. Quando acordei já estava no hospital.
Eu tinha 9 anos, estava com muito medo e perguntava pela minha mãe. Eu não tinha machucados e minha irmã tinha apenas um arranhão na testa. Quando a enfermeira viu que e estava acordada ela pediu que eu esperasse um minuto e então minha tia apareceu e me contou tudo o que havia acontecido naquela noite.
Um carro com um motorista embriagado colidiu com o nosso e papai não conseguiu desviar. Eu cai entre o banco traseiro e o banco do passageiro, estava dormindo e desmaiei com a queda. Meu irmão foi jogado pra fora do carro, pela janela que estava aberta. Minha irmã voou por entre os bancos dianteiros e bateu com a cabeça no painel do carro. Minha mãe foi enforcada pelo cinto de segurança e meu pai ficou preso nas ferragens. Mamãe morreu na hora, papai 2 dias depois e meu irmão, teve traumatismo craniano, se não tivesse morrido no dia seguinte ele teria sequelas graves. Só sobramos eu e minha irmã mais velha.
Quando minha tia me contou isso, eu não consegui dizer nada, eu apenas olhei minha irmã e a abracei com toda a força que cabia em mim naquele momento. Era a única coisa que tinha da nossa família, além das lembranças e daquela parede colorida tão linda da nossa casa.
As pessoas não podem entender o que é isso. Um dia você acorda e tem tudo no lugar e no dia seguinte tudo desorganizado. O tempo que uma mudança brusca leva para acontecer é apenas o de piscar os olhos. Hoje sou muito feliz, vivo alegre por que eu sei que a vida acaba rápido, por isso tento viver bem.
Acho desconfortável quando as pessoas reclamam de coisas tão pequenas: mudar de cidade, de emprego, terminar namoro... Mal sabem o preço do recomeço, de não ter tempo de raciocinar e os problemas já estarem ali, batendo à porta. Somos menores que as formigas diante do tamanho e do poder do além, seja lá onde ele seja, ou quem seja. Há coisas que não se explicam, são vividas, sentidas, e armazenadas dentro de cada um de nós. Assim é a vida que enchemos de vírgulas, exclamações e interrogações dia após dia, o ponto final vem no momento em que o vento sopra mais forte. Às vezes parece até que sabemos, sentimos o cabelo voar, mas não queremos acreditar.
Ficamos com nossa tia, ela nos adotou. Perdemos nossos pais e nosso irmão. Ganhamos uma família nova e irmão novos, mas não deixamos de ter um pedaço dos nossos pais entre nós, afinal de contas, nós somos um pedaço deles.
O vento soprou forte demais aquela noite. Hoje, o sol está brilhando tanto!